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Quem fala em um artigo científico?

Por trás da definição sobre quem fala em um artigo científico existem fundamentos epistemológicos e retóricos.

Os fundamentos epistemológicos relacionam-se com as diferentes concepções de ciência. Simplificando, diríamos: uma concepção de ciência neutra e objetiva pede que se use o impessoal em sua comunicação (por exemplo: observou-se, analisou-se, concluiu-se). Uma concepção de ciência que considera a subjetividade do pesquisador e a construção social do conhecimento admite o uso da primeira pessoa (por exemplo: observei, analisei, conclui ou observamos, analisamos, concluímos).

Também entram em cena os fundamentos retóricos. Afinal, o propósito de um artigo é persuadir a comunidade científica de algo. 

Se o autor considerar que a força do método terá maior capacidade de persuasão, ele utilizará o impessoal, com os verbos na terceira pessoa do singular acompanhado da partícula reflexiva (por exemplo: notou-se), de modo a convencer o leitor de que qualquer pesquisador, seguindo corretamente os mesmos métodos que ele, chegaria a resultados idênticos. 

Se o autor considerar que seu testemunho pessoal terá maior capacidade de envolver o leitor, de fazê-lo entender seu trabalho e concordar com suas conclusões, ele usará a primeira pessoa do singular (eu), caso seja o único autor (por exemplo, notei). Porém, se ele quiser reforçar a ideia de construção coletiva do conhecimento e realçar sua modéstia, ele utilizará a primeira pessoa do plural (nós), mesmo que seja o único autor (por exemplo: notamos). 

Mas, atenção: o autor não toma esta decisão isoladamente. Entra aqui também a tradição de redação científica do campo de conhecimento e as normas de publicação dos periódicos da área.

A pessoa que fala: entre o impessoal, o eu solitário e o nós acadêmico

Em certos campos das ciências naturais e da medicina, em geral, quem fala no artigo é o objeto. Sustentado nos pressupostos da neutralidade, o texto científico é impessoal. Nesses casos, o uso da primeira pessoa pode ser considerado um erro (NAHAS; FERREIRA, 2005).

Segundo Oliveira (2014, n. p.), esse estilo se situa no contexto de uma tradição em que o sujeito investigador deve se recolher, em favor da objetividade, da neutralidade e da modéstia, de forma que, “a construção impessoal é uma estratégia retórica de transferir, de um agente humano (o autor) para os dados factuais, a responsabilidade pelos resultados.”

No entanto, em alguns campos das artes e das ciências sociais e humanas, o autor se sente mais à vontade para apresentar sua voz em um texto científico, ou seja, é possível falar em primeira pessoa. Se o artigo tiver mais de um autor, usa-se, é claro, o plural, mas se você estiver escrevendo sozinho, pode usar tanto o singular (eu) quanto o plural (nós).

E agora, ficou em dúvida sobre qual pessoa utilizar em seu texto?

Veja algumas dicas para tomar a decisão mais acertada:

  • verifique as normas do periódico ao qual você pretende submeter.
  • leia artigos publicados no periódico de interesse e observe como os demais pesquisadores costumam escrever.
  • caso você esteja escrevendo com outras pessoas, discuta esta questão com elas.
  • aconselhe-se com pesquisadores experientes em seu campo


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Referências:

NAHAS, Fabio Xerfan; FERREIRA, Lydia Masako. A arte de redigir um trabalho 
científico. Acta Cirúrgica Brasileira, v. 20, Supl. 2, p. 17-18, 2005. Disponível 
em: 
df. Acesso em 10 fev. 2022.

OLIVEIRA, Sérgio de Freitas. As vozes presentes no texto acadêmico e a 
explicitação da autoria. Pedagogia em Ação, v. 6, n. 1, [n. p.], 2014. Disponível 
Acesso em 10 fev. 2022.





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