A necessidade de "aumentar o Lattes" a qualquer custo, sem contrapartida na melhoria das condições de pesquisa e sem um sólida formação ética dos pesquisadores, professores e postulantes, tem feito com que certos artifícios sejam adotados por muitos sem a devida reflexão.
Tais expedientes vão desde autoplágio e autocitação (ver post: Espelho, espelho meu, existe no mundo alguém mais sabido do que eu?), que se referem à publicação de trechos de produções anteriores, até a duplicação total de um trabalho, como nos exemplos dados neste post.
Aqui, vou tratar de 3 situações, que muitas vezes se entrecruzam: a submissão simultânea, a publicação duplicada e o assédio das revistas predatórias.
Submissões simultâneas: por que não?
Em geral, a submissão a um periódico implica na concordância de não submissão a outro enquanto o artigo estiver em avaliação.Mas, todos nós sabemos como os periódicos demoram em dar o resultado da avaliação. E se, depois de todo o tempo de espera, o resultado for negativo? Não seria melhor os autores já submeterem a diversas revistas e com isso ter mais chance de ele ser aceito?
Ocorre, no entanto, que o processo de avaliação depende do trabalho (em geral, voluntário) de pesquisadores que dispensam uma parte de seu tempo para analisar esses artigos. Ou seja, enquanto fazem isso, os pareceristas/pesquisadores não estão trabalhando em suas próprias pesquisas.
Por isso, submissões simultâneas são perniciosas para a comunidade científica.
Barreto Segundo (2019) chama atenção para o fato que a prática de submissão simultânea ou consecutiva têm sido usada por alguns pesquisadores com o único intuito de receber os pareceres e, assim, promover melhorias em seus trabalhos.
Há poucas formas de controle desta prática, uma vez que, em geral, a submissão é anônima, de modo que depende-se quase que exclusivamente da consciência dos autores, embora os editores possam, eventualmente, notar trabalhos que haviam sido submetidos ao seu periódico, publicado em outro.
Publicações duplicadas: valem a pena?
Vocês já receberam emails de editoras e/ou de revistas acadêmicas convidando-os a submeterem um trabalho já publicado? Provavelmente. E vocês com certeza já se perguntaram: isso é ético? É vantajoso? Convém que eu aceite?Uma das etapas da produção científica não é justamente a divulgação dos resultados?
Então, quanto mais eu difundir os achados da minha pesquisa, melhor, não é?
Pois é, essa lógica até fazia algum sentido na época pré-internet, pois a disseminação dos resultados das pesquisas era bastante restrita. Vejamos: você apresentava um trabalho em um congresso, quem ficava sabendo? Quem via a sua apresentação e os participantes que algum tempo depois teriam acesso aos anais impresso do evento. Atualmente, tudo (ou quase tudo) está on-line, então, é desnecessário publicar duas vezes o mesmo trabalho.
Isso também causa transtornos para a comunidade científica. Por exemplo, imagine que você quer saber o que já se conhece sobre determinado tópico e, no processo de revisão, usa certas palavras-chave, aparecendo como resultado diversos trabalhos, mas, quando você começa a ler, verifica que muitos se referem à mesma pesquisa, não é uma perda de tempo?
Cabe aqui também a mesma questão posta anteriormente a respeito da sobrecarga de trabalho de pesquisadores que atuam como pareceristas de eventos e periódicos.
Outro aspecto, enfatizado por Barreto Segundo (2019) é que esta prática confunde os algorítimos de compilação de citações, podendo, inclusive, prejudicar o próprio autor, que têm suas citações diluídas entre diferentes trabalhos ou, até mesmo, desconsideradas.
Então, eu não posso republicar um trabalho?
Não há problema ético se você informar ao editor do periódico ou organizador do livro, assim como aos leitores, que se trata de um trabalho já publicado.
Isso se justifica em alguns casos, por exemplo: alguém apresentou os resultados parciais em um evento e depois gostaria de publicar os resultados completos em um artigo. Ou deixou de discutir, devido à falta de espaço, questões que considerava importantes do referencial teórico em um artigo e decide escrever um capítulo de livro com uma discussão mais aprofundada. Ou ainda, o trabalho foi publicado em forma de resumo e deseja-se fazer um artigo completo. Publicou em uma língua e quer agora divulgar em outra (veja o post: Teve seu artigo publicado e achou que o trabalho havia acabado?). Desde de que essas situações sejam explicitadas para os leitores e aceitas pelo veículo, é possível fazer nova publicação.
Sobre isso, discorre Guimarães (2004, p. 1):
- "o percurso natural de um texto científico de boa qualidade é ser publicado em anais de encontros e, na sequência, em um periódico, e ainda transformar-se em capítulo de livro. Esse percurso não implica em conduta ética inadequada do autor, desde que respeitadas as regras do periódico e da Editora do livro, relacionadas com direitos autorais."
Revistas predatórias: o que são? Onde vivem? Como se reproduzem?
A disseminação das revistas predatórias é um fenômeno recente (pelo menos, a terminologia é) e consiste basicamente em vender espaço em uma revista pretensamente científica para a publicação de artigos. Portanto, a publicação não depende do valor científico do trabalho, mas do valor monetário mesmo .Essa prática, além de enfraquecer a comunidade acadêmica, privilegia os pesquisadores que dispõem de dinheiro para pagar pela publicação, quando este compete por promoções acadêmicas ou recursos de pesquisas com outros menos abastados (BEALL, 2015).
Barreto Segundo (2019), no entanto, alerta para a importância de não se estigmatizar os trabalhos (que, enfim, podem ser de boa qualidade) e os autores (que muitas vezes são enganados) publicados por estas revistas. Barreto Segundo argumenta que o foco da comunidade científica deveria ser a produção e difusão de boas práticas de publicação, a serem seguidas por todos os periódicos, independentemente de serem ou não tachados de "predatórios".
Apresentei o assédio das revistas predatórias neste post, juntamente com as práticas de submissão simultâneas e publicações duplicadas, pois, estas revistas, muitas vezes, não apenas fazem vista grossa a artigos já publicados como chegam a estimular a prática, sugerindo essa possibilidade nos e-mails que encaminham aos autores.
Sim, e-mails, muiiiiitos e-mails. Eles entopem nossas caixas de entradas com uma forma de marketing agressivo, acenando não apenas com fatores de impactos e outras tecnicidades (às vezes, falsas), como principalmente com a agilidade na publicação. Como dizem por ai: tempo é dinheiro.
A forma que tem sido utilizada para lidar com essas revistas é sua exposição em listas, de modo a alertar os pesquisadores sobre elas (BARRETO SEGUNDO, 2019; BEALL, 2015; BREZGOV, 2019), mas os autores devem desconfiar das facilidades oferecidas.
Enfim....
Esses artifícios prosperam porque a publicação científica está deixando de ser um meio relacionado ao desenvolvimento científico (comunicação entre pesquisadores, divulgação dos resultados das pesquisas etc.) para se tornar meio de ranqueamento de pesquisadores e instituições (destaque pessoal e profissional, competição por recursos, progressão na carreira etc., por parte das pessoas, e aumento de nota da pós-graduação, prestígio, captação de recursos etc., por parte das instituições).Há, sim, muita má fé entre certos pesquisadores, revisores, editores e "donos de revistas" que estimulam práticas pouco edificantes de comunicação científica, mas há também desconhecimento e até mesmo certa ingenuidade de pessoas que, embora bem intencionadas, não percebem os problemas causados por essas práticas e/ou caem nas verdadeiras arapucas armadas pelos predadores.
Falta também uma melhor explicitação dos editores a respeito dos processos de avaliação e dos critérios adotados pelos periódicos. Para Barreto Segundo (2019), a transparência é o primeiro passo para a mitigação dos problemas causados por más práticas de comunicação científica.
Como alerta Miglioli (2012, p. 379),
- "podemos observar que estas diretrizes [dos periódicos] por vezes apresentam caráter ambíguo, no sentido de que não definem semanticamente os termos empregados nos critérios de submissão de artigos (em particular ‘original’ e ‘inédito’), além de uma disparidade no emprego destes termos entre diferentes periódicos de uma mesma área científica. As diretrizes podem também falhar em sanar dúvidas inerentes ao campo da comunicação científica atualmente, como por exemplo, conteúdos publicados em blogs e redes sociais ao longo do processo de pesquisa, anteriores ao ato de submissão dos trabalhos finalizados, descaracterizam o ineditismo do artigo? Artigos publicados eletronicamente em anais de eventos, podem ser submetidos à avaliação dos editores, sem comprometer sua qualidade de original? Monografias de graduação, dissertações e teses podem gerar artigos derivados, sem o risco de que não sejam mais considerados obras inéditas?"
A revisão por pares, como é feita pela maioria dos periódicos conceituados, tem demorado demais para os padrões atuais de inovação. Então, temos que descobrir resposta para a seguinte situação: como produzir conhecimento no ritmo imposto pelos processos de avaliação de pesquisadores e instituições, publicando bons artigos em periódicos qualificados, que avaliem esta produção com agilidade e, ao mesmo tempo, com sólidos critérios científicos.
Ou, quem sabe, em um outro nível, fundamentar a produção de conhecimento em outros valores, diferentes da competição, como por exemplo: solidariedade, cooperação, diálogo etc.
Pois é, não tá fácil para ninguém, nem para os cientistas.
Referências
BARRETO SEGUNDO, João de Deus. Práticas predatórias e anticientíficas em publicação científica. Rev Pesqui Fisioter, v. 9, n. 3, p. 298-300, 2019. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/335487771_Praticas_predatorias_e_anticientificas_em_publicacao_cientifica. Acesso em 22 abr. 2020.BEALL, Jeffrey. Os editores predatórios estão a destruir a integridade da comunicação académica. In: GRANDIM, Anabela; MOURA, Catarina. Comunicar e avaliar ciência. Covilhã, Portugal: Editora LabCom.IFP, 2015.
BREZGOV, Stef. List of publishers. Scholarlyoa. Publicado em 27 maio 2019. Disponível em: https://scholarlyoa.com/publishers/. Acesso em 22 abr. 2020.
GUIMARÃES, Tomás de Aquino. Editorial. Rev. Adm. Contemp, Cutitiba, v. 8, n. 4, p. 1-2, 2004. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rac/v8n4/v8n4a01.pdf. Acesso em 21 abr. 2020.
MIGLIOLI, Sarah. Originalidade e ineditismo como requisitos de submissão aos periódicos científicos em Ciência da Informação. Liinc em Revista, Rio de Janeiro, v.8, n.2, setembro, p. 378-388, 2012. Disponível em: http://eprints.rclis.org/18282/2/Miglioli%2C%20S.%20Originalidade%20e%20Ineditismo.pdf. Acesso em 22 abr. 2020.
Para saber mais:
- A avaliação da Pós-graduação e a sua relação com a produção científica: dilemas entre a qualidade e a quantidade
- Comunicar e Avaliar Ciência
- Diretrizes de Integridade na Pesquisa (CNPq)
Crédito das imagens
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