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Relato de experiência: um gênero substimado na comunicação científica


A expressão relato de experiência (RE) é utilizada para designar um gênero textual, que pode estar vinculado a várias atividades acadêmicas, científicas e formativas. Além disso, sua concepção pode ser tributária de diferentes correntes teóricas.

Some-se a essa multiplicidade de significações, o pouco interesse em seu ensino em instituições de ensino superior (FERREIRA, 2017; FIAD; SILVA, 2009).

Pronto, está formada a confusão.

Muitas vezes, estudantes são chamados a produzirem RE ou pesquisadores são conclamados a publicarem seus relatos, sem que se tenha clareza do que isso significa exatamente.

1 - O que são relatos de experiência?

Como dissemos, os relatos de experiência são utilizados tendo em vista diferentes finalidades: registros do cotidiano, produção de conhecimento, formação profissional etc.    (DALTRO; FARIA, 2019, FERREIRA, 2017; FIAD; SILVA, 2009; OLIVEIRA, 2012) e, assim, podem ser definidos de diversas maneiras.

Aqui, trataremos do RE como forma de comunicação científica, pois nosso propósito é ajudar o autor científico a produzir um artigo do tipo relato de experiência.

Nesse sentido, relatos de experiência são formas de comunicar, no âmbito científico, conhecimentos produzidos em contextos particulares, por pessoas implicadas, que assumem sua subjetividade como parte do processo.

Dessa maneira, o RE pressupõe um trabalho de memória e de construção de relações, em que o acontecido é elaborado pelo seu relator, que invoca “suas competências reflexivas e associativas, bem como suas crenças e posições de sujeito no mundo.” (DALTRO; FARIA, 2019, p.226).

Portanto, em um RE o autor não precisa (e podemos dizer, nem deve) se esconder, utilizando uma escrita impessoal, pois o RE “põe em evidência a autoria do produtor por meio de descrição e análise dos fatos que ele viveu, num ambiente onde ele estava, suas interações, suas observações, guiado por suas leituras (FERREIRA, 2017, p. 4, itálicos no original).

Podemos dizer que há o tempo da experiência propriamente dita e o tempo de se debruçar sobre essa experiência, refletindo sobre ela e sistematizando as aprendizagens mais interessantes para serem compartilhadas por meio de um RE. Nesse sentido, um RE precisa ir além da descrição, propiciando interpretações e compreensões a respeito do acontecido.

Apesar de considerar as subjetividades envolvidas na elaboração de um RE, as interpretações dos acontecimentos não se dão pelos gostos e preferências do relator, mas precisam do apoio de um referencial teórico. Dito de outra forma, um RE não pode ser “uma narração emotiva e subjetiva, nem uma mera divagação pessoal e aleatória.” (UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA, 2017, n.p.).

2- Qual deve ser a estrutura de um RE?

Ao se escrever um RE, visando sua publicação, é necessário que o autor cuide para que o texto contenha:

a. Uma introdução, apresentando as motivações da experiência e seus objetivos, bem como, possíveis estudos precedentes sobre o fenômeno em questão.

b. O marco teórico que dá suporte às análises e interpretações.

c. Um tópico sobre metodologia, que deve apresentar uma descrição detalhada do contexto, dos participantes e das condições da experiência. Deve também apresentar os instrumentos que foram usados para a registro das informações e a maneira como eles foram utilizados.

d. A descrição da experiência, bem como as análises e/ou interpretações decorrentes.

e. Por fim, apontar claramente quais os resultados (tanto os positivos quanto os negativos) obtidos com a experiência e as aprendizagens desenvolvidas no processo.

3 – Qual a diferença entre artigos de pesquisa e artigos de relatos de experiência?

A distinção entre um RE e um artigo de pesquisa quantitativa é facilmente verificável, pois, são produzidos a partir de paradigmas distintos.  

No entanto, é difícil precisar esta distinção entre os artigos de relatos de experiência e os artigos de resultados de pesquisa qualitativa, pois há muitos elementos comuns, como por exemplo: a presença de aspectos subjetivos, a consideração pela singularidade, a impossibilidade de reprodução do estudo etc.

Os trabalhos citados a seguir demonstram as dificuldades que se colocam para se fazer tal distinção.

Por exemplo, Daltro e Faria (2019) consideram o RE como um tipo de pesquisa qualitativa que, no entanto, difere-se da pesquisa-ação ou de um estudo de caso, pois,

o RE não é previamente pensado como uma pesquisa, ele é efeito de significação, por isso não pode prescindir da participação ativa do(s) autor(es) do projeto que faz parte do requisito. A significação da experiência, enlaçada à realidade concreta, é identificada no processo ou posteriormente, quando o sujeito – já afetado pelo discurso da ciência – pode localizar a potência de teorização dessa, para o avanço de determinado campo de conhecimento (DALTRO; FARIA, 2019, p.226).

Kurtz (2005) analisou artigos de pesquisa e de RE de dois periódicos internacionais de linguística aplicada. A autora observou que os textos dos RE eram escritos de forma mais pessoal, com o uso da primeira pessoa, e enfatizavam os processos mentais, enquanto nos artigos de pesquisa, a preferência era pelo uso de nominalizações (o estudo, a pesquisa) e da voz passiva, valorizando os processos materiais.

Oliveira (2012) analisou o processo de retextualização, por parte de estudantes de licenciatura, na transformação de seus relatos de estágio em artigos científicos. Nesse sentido, aparentemente os relatos tiveram uma função mais formativa, enquanto os artigos visavam a comunicação científica. Uma das dificuldades dos estudantes nesse processo foi superar a mera descrição (própria do relato) e apresentar os métodos empregados, a abordagem teórica utilizada e aos resultados alcançados (como se espera de um artigo).

Vemos, portanto, por esses poucos trabalhos sobre o assunto, a dificuldade em se caracterizar os artigos de relatos de experiência, diferenciando-os dos artigos de resultados de pesquisa qualitativa.

E assim, nos perguntamos, tal distinção é realmente necessária? Se sim, acreditamos que cabe aos periódicos determinarem claramente quais são as características esperadas para cada um desses gêneros.

Em uma busca rápida no portal do Scielo, notamos que, entre as revistas de educação:

  •     a maioria não faz referência ao RE,
  •     7 revistas afirmam explicitamente que não aceitam esse tipo de artigo,
  •     3 afirmam aceitar.

Das que aceitam RE, uma não o caracterizou, as demais apresentaram as seguintes explicações:

Interface - Comunicação, Saúde, Educação. Relatos de experiência: textos embasados teoricamente que descrevam e analisem criticamente experiências relevantes para o escopo da revista.

Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos.  Relatos de experiência: artigos teórica e metodologicamente fundamentados, contextualizados historicamente, oriundos de projetos inovadores de intervenção pedagógica na área de educação, com análise crítica e reflexiva de processos e resultados.

4 - Por que muitas revistas não aceitam relatos de experiência?

A ciência moderna se desenvolveu sobre os pilares da universalidade, objetividade, impessoabilidade e neutralidade.

Desta maneira, muitos campos não reconhecem como científico um conhecimento originado de um processo que não pode ser reproduzido e cujos resultados não podem ser universalizados; um conhecimento que leva em consideração as condições históricas, sociais e culturais do contexto e que não anula a subjetividade.

O RE, por sua vez, nunca “poderá se estabelecer como universal, replicável ou passível de validação pois, naquilo que localiza seu território discursivo, ele mesmo estará alinhado às produções que compreendem o conhecimento visto nas territorializações que dão-se a ver.” (DALTRO; FARIA, 2019, p. 232).

No entanto, numa concepção de ciência que busca superar os dogmas da modernidade, o RE pode contribuir para apresentar novas visões das múltiplas singularidades que compõem a realidade. Dessa maneira, é possível “pensar o RE em perspectiva epistemológica, expandida a partir das singularidades, sendo, consequentemente, um importante produto científico na contemporaneidade.” (DALTRO; FARIA, 2019, p. 232).

5 – Nossa posição

Consideramos o RE como uma produção científica legítima da contemporaniedade, que contribui para o conhecimento do cotidiano, a partir de suas singularidades, e para superação de dicotomias como: teoria e prática, sujeito e objeto, trabalho e formação.

Nesse sentido, não se concebe que se continue considerando os relatos de experiência como o “primo pobre” dos artigos científicos, seja reservando menos espaço para eles (às vezes, nenhum), atribuindo menor status que aos artigos de pesquisa ou avaliando-os com mais condescendência.

Cabe também às instituições de ensino, em especial na educação superior, promover o ensino desse gênero textual, uma vez que ele tem sido cada vez mais solicitado em atividades formativas, acadêmicas e científicas.

 

 

Referências

DALTRO, Mônica Ramos; FARIA, Anna Amélia. Relato de experiência: uma narrativa científica na pós-modernidade. Estudos e Pesquisas em Psicologia, Rio de Janeiro, v. 19, n. 1, p. 223-237, jan-abr. 2019. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revispsi/article/view/43015. Acesso em 02 abr. 2022.

FERREIRA, Elisa Cristina Amorim. Escrita na universidade: apontamentos sobre o gênero relato. In: IV SIMPÓSIO NACIONAL DE LINGUAGENS E GÊNEROS TEXTUAIS, Campina Grande-PB, 2017. Anais... Universidade Estadual da Paraíba, Campina Grande, 2017. Disponível em: https://editorarealize.com.br/artigo/visualizar/27334. Acesso em 02 abr. 2022.

FIAD, Raquel Salek; SILVA, Lilian Lopes Martin. Escrita na formação docente: relatos de estágio. Acta Scientiarum. Language and Culture, Maringá, v. 31, n. 2, p. 123-131, 2009. Disponível em: https://periodicos.uem.br/ojs/index.php/ActaSciLangCult/article/view/3600/3600. Acesso em 02 abr. 2022.

KURTZ, Fabiana Diniz. Artigo acadêmico e artigo de relato de experiência: uma análise de gênero com foco em tópicos e procedimentos de pesquisa. In: III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE ESTUDOS DE GÊNEROS TEXTUAIS (SIGET)., 2005, Santa Maria, RS. Caderno de resumos..., Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, 2005. Texto completo disponível em: http://www.leffa.pro.br/tela4/Textos/Textos/Anais/SIGET_III/artigos/Kurtz.pdf. Acesso em: 02 abr. 2022.

OLIVEIRA, Adilson Ribeiro. Do relato de experiência ao artigo científico: questões sobre gênero, representações e letramento na formação de professores a distância. SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 16, n. 30, p. 307-320, 2012. Disponível em: http://periodicos.pucminas.br/index.php/scripta/article/view/4253/4406. Acesso em 02 abr. 2022.

UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA. Instituto de Ciências da Vida. Departamento de Nutrição. Instrutivo para elaboração de relato de experiência. Governador Valadares-MG, [2017]. Disponível em: https://www.ufjf.br/nutricaogv/files/2016/03/Orienta%C3%A7%C3%B5es-Elabora%C3%A7%C3%A3o-de-Relato-de-Experi%C3%AAncia.pdf. Acesso em 02 abr. 2022.


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